quarta-feira, 20 de março de 2024

Lula é 'um gerente muito ruim' de sua coalizão de poder, diz cientista político Carlos Pereira

Queda de popularidade do presidente Lula se deve principalmente à inflação, fruto de política fiscal frouxa, mas ainda há tempo de mudar, diz professor da FGV© Reuters

O segundo ano de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) começa marcado por reveses para o presidente. Apesar do desempenho acima do esperado da economia, o petista vê sua popularidade cair nas pesquisas de opinião e sofre derrotas no Congresso, como a eleição de nomes da oposição para a presidência de comissões estratégicas na Câmara dos Deputados.

Seria um sinal de fracasso do presidencialismo de coalizão, modelo político em que a governabilidade é garantida através da distribuição de cargos e verbas aos diferentes partidos?

Carlos Pereira, professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acredita que não.

"O presidencialismo de coalizão está mais firme do que nunca. O problema é que o presidente Lula é um mau gerente de coalizão. Ele montou uma coalizão grande demais – tem 16 partidos, é uma coalizão gigante, muito difícil de coordenar", diz Pereira, em entrevista à BBC News Brasil.

Para o analista, a queda de popularidade de Lula se deve principalmente à inflação resiliente, que é impactada pela política fiscal frouxa adotada pelo governo. A boa notícia é que ainda dá tempo de mudar, diz Pereira.

"Ainda é cedo. Início do segundo ano de mandato, o governo ainda tem tempo para recuperar. Mas ele não dá sinais críveis de que irá implementar uma política responsável do ponto de vista fiscal e orçamentário. Pelo contrário, o governo tem sinalizado que a saída para aumentar sua popularidade é aumentar gasto", critica.

Em meio ao avanço das investigações sobre suposta tentativa de golpe conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o cientista político tem sido uma das poucas vozes a defender reiteradamente que não houve chance real de ruptura ou mesmo fragilização da democracia no governo Bolsonaro.

"Minha interpretação é de que os generais se recusaram [a embarcar no golpe] porque os custos políticos, institucionais e reputacionais, para qualquer um que pudesse enveredar em uma tentativa de ataque à democracia, são impagáveis", afirma.

"No momento em que esses generais peitam Bolsonaro, eles não o fazem apenas motivados pelas suas preferências individuais ou pelo seu heroísmo individual, mas porque estão inseridos em um contexto institucional que os constrange."

Pereira discute este e outros temas no livro Por que a democracia brasileira não morreu?, escrito em coautoria com Marcus André Melo, e que deverá ser lançado pela Companhia das Letras em maio.

Para o cientista político, o cenário que se coloca para as eleições municipais com Lula com a popularidade em queda e Bolsonaro pressionado pela Justiça é de oportunidade.

"Bolsonaro, com os custos políticos de uma eventual condenação judicial, possivelmente vai perder capital político. E Lula vai perder esse antagonismo, que também o beneficia", afirma.

"Com um dos polos se tornando carta fora do baralho e o outro fragilizado, é uma oportunidade para os partidos e os candidatos tentarem outras agendas e não essa agenda nacional polarizada."

Confira os principais trechos da entrevista.

Carlos Pereira (foto) lança em maio, pela Companhia das Letras, o livro Por que a democracia brasileira não morreu? , em coautoria com Marcus André Melo© Divulgação

BBC News Brasil - O senhor tem defendido que não houve chance real de ruptura no governo Bolsonaro, devido à resiliência das instituições brasileiras. À luz dos depoimentos dos comandantes das Forças Armadas que revelaram que o ex-presidente chegou a conduzir reuniões para discutir documentos com teor golpista, o senhor ainda avalia que a democracia do país não correu risco?

Carlos Pereira - Sim. Acredito que os depoimentos confirmam exatamente o que eu venho defendendo.

BBC News Brasil - Por quê?

Pereira - Porque existem duas avaliações nisso. Quanto a esse general e esse tenente-brigadeiro [os ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior] que foram os que deram depoimentos e que, de certa forma, se opuseram à ideia golpista de Bolsonaro, uma interpretação é percebê-los como heróis.

O próprio presidente Lula disse isso na reunião ministerial [realizada na segunda-feira, 18/3]. Ele faz uma análise individual, como se o Brasil tivesse escapado do risco porque esses generais se recusaram a embarcar no golpe.

Já a minha interpretação é de que esses generais se recusaram porque os custos políticos, institucionais e reputacionais para qualquer um que pudesse enveredar em uma tentativa de ataque à democracia são impagáveis.

A sociedade brasileira é uma sociedade muito sofisticada, que tem múltiplos interesses, mas que tem a democracia como um valor de agregação importante e revela essa agregação em vários momentos.

'Generais se recusam a embarcar no golpe e peitam Bolsonaro, não motivados por preferências individuais ou heroísmo, mas porque estão inseridos em um contexto institucional que os constrange', diz cientista política da FGV© Reuters

BBC News Brasil - Quais momentos, por exemplo?

Pereira - Por exemplo, quando o governo Bolsonaro se recusou a compartilhar os dados de contaminação e mortes na pandemia, ocorreu um movimento espontâneo de competidores no mercado de mídia – Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, G1, Extra e UOL – todos eles montarem um consórcio de imprensa em que eles se responsabilizaram por pesquisar dados sobre contaminação e morte das pessoas na pandemia.

Isso mostra uma capacidade absurda, mesmo de competidores, de abrir mão da sua competição diante de um bem coletivo maior.

Outro exemplo importante foi quando Bolsonaro chamou aquela fatídica reunião com os embaixadores contra a urna eletrônica e organizou uma parada militar em Brasília no dia da votação [na Câmara dos Deputados da proposta de emenda constitucional] do voto impresso.

A sociedade deu uma resposta fortíssima, com mobilizações puxadas pelo departamento de Direito da USP, em que mais de 1 milhão de pessoas assinaram a carta em defesa da democracia, mostrando que uma diversidade enorme de pessoas que pensam diferente, que têm ideologias diferentes, que têm preferências políticas e partidárias diferentes, se agregaram em torno da democracia.

BBC News Brasil - E quanto às instituições?

Pereira - Você tem o multipartidarismo, que torna muito difícil para um populista, seja ele de esquerda ou de direita, fazer valer sua preferência de forma autoritária. Ele vai ter que convencer muita gente, porque são muitos partidos, com vários pontos de veto em potencial.

Temos o federalismo, constituições estaduais, judiciários estaduais, governadores.

Quer dizer, é um gama tão grande de atores que um populista tem que convencer em torno de um projeto autoritário, que esse projeto não tem chance de vingar.

Então, no momento que esses generais se recusam e peitam Bolsonaro, eles não o fazem apenas motivados pelas suas preferências individuais ou pelo seu heroísmo individual, mas porque eles estão inseridos em um contexto institucional que os constrange e que restringe o leque de opções que esses caras teriam para atuar fora do campo democrático.

Então o golpe fracassou porque esse conjunto complexo de instituições da sociedade impõe custos muito altos – custos impagáveis – para quem decide trilhar um caminho dessa natureza.

BBC News Brasil - O senhor citou a questão do multipartidarismo e como é difícil para um populista fazer valer suas preferências nesse cenário. Isso leva à minha próxima pergunta: por que o presidencialismo de coalizão parece não ter sido capaz de moderar Bolsonaro, já que ele aparentemente cogitou a possibilidade de golpe até o fim do governo?

Pereira - Eu acredito que moderou sim. Veja, Bolsonaro foi eleito negando a própria política. Ele fez uma associação direta entre o presidencialismo de coalizão e a corrupção do PT no passado.

Com poucos meses de governo, em que ele não tinha maioria [no Congresso], não tinha coalizão, ele saiu de seu próprio partido [então o PSL] e governou por quase um ano e meio sem qualquer partido.

Nesse momento, Bolsonaro era muito perigoso, porque ele estava negando as instituições e surfando de forma não institucional.

Mas veio a pandemia e uma série de pedidos de impeachment começaram a chegar na mesa do presidente da Câmara – ainda um presidente da Câmara hostil a Bolsonaro, que era Rodrigo Maia [então do DEM-RJ] na época. E Bolsonaro saiu desesperado tentando construir uma coalizão.

No momento em que Bolsonaro faz uma coalizão com o Centrão, ele se domestica, ele perde esse discurso antipolítica, e ele começa a fazer política.

Entretanto, todo bom populista não pode abrir mão na sua totalidade do discurso que o faz viável eleitoralmente.

Então ele foi nesse fio da navalha até o final de seu governo, namorando com o perigo, mas com as instituições o tempo inteiro dando limites para ele.

Por exemplo, o governo Bolsonaro foi o governo que mais enfrentou derrotas sucessivas no Judiciário e derrotas sucessivas no Legislativo.

Isso significa que as instituições estavam muito atentas e muito vigilantes, a despeito de ele ficar namorando com o perigo não institucional o tempo inteiro, enquanto também jogava o jogo institucional o tempo inteiro.

Foi esse jogo duplo que Bolsonaro jogou a partir do momento em que procurou o Centrão em 2020.

O deputado federal bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) foi eleito presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados© Agência Câmara de Notícias

BBC News Brasil - Falando então de derrotas do governo, mas agora puxando para o governo atual. O governo petista tem enfrentado sucessivas derrotas no Congresso, sendo a mais recente a vitória da oposição para o comando de comissões estratégicas, como CCJ [Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania] e Educação. Na sua visão, ainda faz sentido falar em presidencialismo de coalizão na conjuntura atual ou isso parou de funcionar?

Pereira - O presidencialismo de coalizão está mais firme do que nunca. O problema é que o presidente Lula é um mau gerente de coalizão. Ele montou uma coalizão grande demais – tem 16 partidos na sua coalizão, é uma coalizão gigante, muito difícil de coordenar.

E ele chamou 16 partidos muito heterogêneos, completamente diferentes um do outro, com preferências ideológicas e políticas muito díspares.

Há desde a extrema esquerda, como Psol, PCdoB, até partidos de direita, como União Brasil, PSD, como partidos de centro, como o MDB.

Então o presidente Lula enfrenta altíssimos custos de coordenação. Além disso, o governo Lula também não compartilha poder e recursos com os parceiros, levando em consideração o peso proporcional de cada um deles no Congresso.

Por exemplo, dos 37 ministérios do governo Lula atual, o PT tem 22 ministérios.

Então se coloque na posição do União Brasil, que tem mais ou menos o mesmo número de cadeiras do PT no Congresso, e tem três ministério. Por que que ele vai ser disciplinado na coalizão, se não está sendo recompensado?

Isso obviamente vai criar animosidades entre os parceiros, vai criar ressentimentos. E esses parceiros vão se posicionar estrategicamente a cada votação.

Quando o presidente sinaliza que precisa muito aprovar alguma coisa, esse é o momento por excelência de um parceiro que está sendo sub recompensado de tentar equilibrar o jogo.

Então o problema não é do presidencialismo de coalizão, o problema é do gerente. O problema é que o gerente é muito ruim.

'Problema não é do presidencialismo de coalizão, o problema é do gerente, que é muito ruim', diz Pereira, sobre Lula© Lula Marques/Agência Brasil

BBC News Brasil - Como o senhor avalia o cenário atual do governo Lula? Esse momento de perda de popularidade do presidente, que realizou até essa reunião ministerial na última segunda-feira.

Pereira - Nos meus estudos, a popularidade impacta muito pouco sobre a taxa de sucesso do presidente no Congresso, bem como sobre o custo de governabilidade. A popularidade não é a variável mais importante. Entretanto, ela é fundamental para a relação do presidente com a sociedade.

Então é um momento em que o governo sinaliza vulnerabilidade. Em que, de certa forma, a política econômica do governo está em xeque, porque, em última instância, a população está reagindo à inflação de alimentos. Acho que esse é o ponto-chave.

Normalmente, a popularidade tem duas variáveis-chaves: a inflação e o desemprego. O eleitor brasileiro é avesso à inflação. E o governo Lula tem tido políticas frouxas do ponto de vista fiscal, e isso tem gerado déficits crescentes, que têm um impacto inflacionário.

Então é uma escolha também do presidente namorar com o perigo.

Ainda é muito cedo. Início do segundo ano [de mandato], o governo ainda tem tempo para recuperar. Mas ele não dá sinais críveis de que irá implementar uma política responsável do ponto de vista fiscal e orçamentário. Pelo contrário, o governo tem sinalizado que a saída para aumentar sua popularidade é aumentar gasto.

Então essa é uma lição de casa que o PT e o governo Lula não aprenderam. Porque eles já viveram isso no passado e eles continuam se comportando do mesmo jeito, acreditando que o Estado tem um papel importante na economia. E essa postura mais frouxa em relação ao controle das contas públicas tem um preço.

Cedo ou tarde, [a conta] vai chegar. A grande oportunidade do governo Lula é que tenha chegado cedo. Então dá tempo para o governo fazer ajustes no sentido de sinalizar mas crivelmente compromissos com o equilíbrio macroeconômico.

BBC News Brasil - E como essa questão da popularidade em queda pesa sobre as relações entre Executivo e Legislativo?

Pereira - Eu interpreto isso muito mais com uma restrição do que com um impeditivo. Então vai dificultar, vai criar mais um barulho, mas não vai impedir o presidente de desenvolver uma relação boa com o Legislativo, se ele fizer as escolhas certas de como se relacionar com seus parceiros.

O problema é que, como o presidente Lula não sinaliza nenhuma reforma ministerial que pudesse acomodar melhor os seus parceiros, e cortar na própria carne, no próprio PT, esses problemas vão estar presentes sempre no governo.

Vai ter momentos em que o governo vai conseguir aprovar mais, gastando mais, e vai ter momentos que vai aprovar menos.

O custo de governabilidade vai ser diretamente proporcional à necessidade que o governo terá de aprovar essa ou aquela matéria.

Quanto mais o governo sinalizar que precisa muito que o legislador vote com ele, mais o Legislativo vai se posicionar de forma estratégica, inflacionando o custo do voto dele.

BBC News Brasil - E que cenário Lula com popularidade em queda e Bolsonaro pressionado pelas investigações sobre a tentativa de golpe colocam para as eleições municipais desse ano?

Pereira - Estamos com um cenário muito polarizado. Tem algumas pessoas até defendendo a ideia de que essa polarização está calcificada.

Mas um cenário em que Bolsonaro muito provavelmente vai enfrentar punições judiciais daqui a algum tempo, e com Lula perdendo conexões eleitorais, é uma oportunidade para os partidos que não estão diretamente vinculados a esses dois polos e para que o eleitorado busque alternativas.

Então talvez seja uma oportunidade boa para diminuir essa polarização entre Lula e Bolsonaro.

Porque Bolsonaro, com os custos políticos de uma eventual condenação judicial, possivelmente vai perder capital político. E Lula vai perder esse antagonismo, que também o beneficia, porque ele também nutre essa polarização.

E quanto mais o jogo é polarizado, mais difícil é para uma alternativa aos polos se tornar competitiva.

Com um dos polos se tornando carta fora do baralho e o outro fragilizado, é uma oportunidade para os partidos e os candidatos tentarem outras agendas e não essa agenda nacional polarizada.

É uma oportunidade para os outros partidos se livrarem desse karma, se livrarem desses pesos. Porque, se por um lado Lula e Bolsonaro são um ativo, uma ferramenta, são ferramentas muito pesadas. A esquerda já teve chance de se livrar de Lula no passado e não conseguiu.

Está se aproximando uma oportunidade para a direita se livrar de Bolsonaro e buscar outros candidatos melhores, mais comprometidos com a democracia, com as instituições, então pode ser uma chance, pode ser uma oportunidade.

Ainda é muito cedo para dizer, mas talvez abra-se essa janela para que os partidos considerem outras estratégias, ao ancorar suas candidaturas a prefeito em 2024 em outros temas e outras alternativas.


História de Thais Carrança - Da BBC News Brasil em São Paulo

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